Malu: a campeã da UTI Pediátrica do Hospital

Maria Luisa, prematura de 27 semanas, desde que nasceu, permanece sendo cuidada com recursos de uma UTI. Há dez anos ela não tem alta, só transferências entre internação hospitalar e domiciliar. E com toda sua alegria de viver comemorou o último Natal em casa, depois da última passagem de 90 dias pela UTI Pediátrica do Monte Sinai. Um período em que ela fez questão de decorar todo o ambiente, tornando a UTI Neonatal do Hospital “mais bonita para os bebezinhos” durante o mês de dezembro.

Laura Nassif é um exemplo de mãe, de perseverança, de desprendimento… Difícil é se colocar no lugar dela e encontrar todos os adjetivos ao vê-la contar como é feliz ao lado da Malu (como todos a conhecem no Hospital) e como valoriza cada momento ao lado da filha. Ela relembra que a bebê nasceu no Monte Sinai. Depois dos primeiros meses na UTI e um período no Rio de Janeiro, confirmou-se o diagnóstico: Malu tinha uma síndrome rara, Glicogenose Congenita Tipo IV, e jamais poderia deixar de viver em ambiente de UTI, mesmo assim, com prognóstico de sobrevivência de cinco anos.

Em 2015, já com dez anos, ela desafia a literatura médica e encanta a todos com sua felicidade, sua alegria contagiante mesmo vivendo ligada aos aparelhos. Em casa, a família adaptou uma UTI domiciliar, onde ela reveza suas estadias, com períodos em que precisa de cuidados médicos 24h na UTI Pediátrica do Monte Sinai. Desde a primeira transferência, aos 11 meses de idade, Laura não sabe dizer quantos períodos Malu passou dentro do hospital, pois além das intercorrências próprias da doença, ela precisou passar por algumas cirurgias. “Mas ela é apaixonada por esta equipe desde pequena e, nesta última internação, chegou a dizer que não queria voltar para casa, de tantas atividades que inventou”, conta a mãe. Ela fez colagens de árvore e Natal em EVA, papel e palitos para enfeitar cada incubadora dos bebês da UTI, lembranças para cada profissional da equipe e decorou até a porta do setor.

Mas o ponto alto da última internação foi um domingo em que um grande esquema foi montado pela equipe para o primeiro passeio de Malu pelo Hospital – um aparato de bombas portáteis, oxigênio, soro e equipamentos indispensáveis para que ela pudesse deixar o leito. “Para ela o hospital se resumia à UTI, pois mesmo quando ela vai fazer exames, vai de UTI Móvel e não compreende o espaço em que circula”. Ela quis conhecer os quartos para onde os bebês vão depois de deixarem a Unidade, viu o heliponto; foi a primeira vez que chupou um picolé na cantina, que viu um piano; a primeira vez que viu uma fachada de loja, após percorrer as passarelas e, de onde viu a rua tão de perto, além de tudo mais, que foi uma grande novidade para ela. Mas o melhor momento para Malu foi a visita à cozinha. Ela só se alimenta por gastrostomia, raramente come alimentos, mas ficou extasiada com o cheiro da comida e garantiu que só com ele ficou saciada.

A prática de humanização é parte do dia a dia na UTI, mas isto foi além da rotina, com grande mérito. “A visita foi um dos momentos mais emocionantes que já vivi nestes 20 anos de Monte Sinai”, garante a neonatologista Sandra Tibiriçá – que teve a ideia, acompanhou o passeio e permitiu a visita, inclusive à cozinha. Como prêmio ela ganhou uma colagem de um galinheiro feito pela Malu. Ao “trocar sonhos” com a menina, disse: “se eu não fosse médica, queria ser fazendeira”. “Se eu não fosse criança, queria ser cozinheira”, contou Malu. E por isso seu encanto com o cheiro, as panelas enormes, o fogão e tudo o que nunca tinha visto igual.

Uma rotina mais que inusitada

“Temos o Hospital como uma extensão da nossa casa; essa equipe, como uma extensão da minha família, pelo cuidado, pelo amor que recebemos. Quando vou para casa, fico tranquila, porque sei que ela é muito bem cuidada, confio plenamente nos médicos”, garante Laura. Ela explica que viver em função da doença, no início, foi muito difícil. Encarar a realidade de uma criança especial com tantas limitações, que não sai de casa, limita a vida da família. Viagens, por exemplo, são raríssimas. Afinal de contas, os passeios só podem ser feitos onde há sinal de celular. Ao longo dos anos, a doença já atingiu quase todos os órgãos vitais da pequena, ela não tem mais chance de transplante, já comprometeu sua capacidade pulmonar e muscular. E desde o início, uma equipe multidisciplinar também a acompanha em casa.

Mas não há na literatura médica, segundo a mãe – que é profunda conhecedora da doença agora -, uma criança com esta síndrome, na evolução do quadro dela, com dez anos. E, principalmente, nenhuma com sua alegria de viver. “Isso supera qualquer coisa”, conta Laura. “A Medicina não explica o fato de ela estar viva até hoje, mas eu sei que é muito amor – mais amor do que técnica – o que mantém a Maria Luisa com esta vontade de viver. Deus foi nos dando a graça da aceitação e ela me ensinou a viver não um dia de cada vez, mas uma manhã, uma tarde, uma noite de cada vez. Cada minuto para ela é precioso, muito mais valioso que um dia. Laura tem uma filha mais velha (Elisa), uma enteada (Bruna), e seu esposo Elmer (o padrasto de Malu), ‘que é uma benção na vida de suas filhas'”, garante Laura. “Vivemos em função dela, a casa gira em torno da Malu. O espaço é todo adaptado, meu trabalho é praticamente dentro de casa”.

Laura é dentista, odontopediatra, e diz que ser da área de saúde em alguns momentos atrapalha. Ela estudou tanto sobre a síndrome que hoje tem o respeito de todos os médicos da UTI. Mas ao receber um exame já sabe o que significa, o que é preciso fazer e acaba dando mais opinião do que deveria. Mas não deixou nada ser mais limitante do que o necessário para Malu. A menina nunca frequentou uma sala de aula, mas desde pequena, matriculada numa escola do município, tem aulas com uma professora em casa. Ela não acompanha idade escolar de uma criança de 10 anos, porém, foi alfabetizada, lê e escreve, desenha muito e é extremamente criativa. A mãe sempre teve a preocupação de estimulá-la muito para que a menina não tivesse a lesão cerebral que a doença causa.

Mas o mais incrível é a aceitação tão grande de Malu em relação à condição em que vive. Quando precisa ir para cadeira de rodas ela vai; se precisa de punção de cateter, aceita. “Lógico que às vezes reclama, chora porque sofre a dor física, mas aceita e sempre que termina qualquer procedimento ela agradece muito a quem a ajudou, especialmente à sua médica, Dra. Heloísa Baraky, que faz o acompanhamento na internação domiciliar e também atua na coordenação da UTI Neonatal/Pediátrica do Hospital Monte Sinai. Ela tem noção que salvaram sua vida e é muito grata”, garante a mãe. “Ela tem um entendimento muito forte de suas limitações, e com tanta alegria de viver, comove a todos que tem privilégio de conviver com ela”, completa.

O troféu de campeã

Depois de um bom período, quase três anos sem cuidados médico-hospitalares, a recente internação era só para uma cirurgia de implante de cateter. Mas ao chegar ao Hospital, foi constatado que seu estado era mais grave do que parecia e com previsão inicial de 45 dias em UTI. Isso entristeceu a menina, disse a mãe, mas logo ela aderiu a uma nova ideia. Vencendo cada etapa de 15 dias, ela ganharia uma medalha, conquistando bronze, prata e ouro. Mas a estadia se prolongou, sem muita previsão, e a ideia do passeio surgiu da reclamação de Malu que já estava há muitos dias sem ver o sol. “Depois disso, o difícil foi convencê-la de que não podia passear todos os domingos”, ri a mãe. Mas ela reivindicou um troféu, pois as medalhas já tinham sido conquistadas com mérito.

E o troféu chegou no dia da entrevista com Laura. Quando já bem estabilizada, a equipe começava a preparar a cirurgia para troca do cateter totalmente implantado que vai permitir outra estadia em UTI domiciliar. A mãe também foi trazendo as fotos da família, novos painéis para decorar o quarto, para Malu lembrar como é feliz em casa também, já que queria tanto ficar com sua querida equipe na UTI. A entrega do prêmio teve até o tema da vitória, ensaiada pela enfermagem.

“E a gente segue vivendo as pequenas vitórias dela”, diz a mãe. “Hoje, o fisioterapeuta a colocou em pé, depois de 100 dias, ela deu alguns passos. Isso é muita emoção, pois antes da internação ela já estava há uns 20 dias sem andar. Ela é a minha campeã mesmo, pois se eu falasse que ela teria que passar Natal e Ano Novo no Hospital, ela aceitaria”.

O depoimento de Laura é mais que comovente: “nem vimos estes mais de 80 dias se passarem. A internação não se resume na quantidade de meses que estamos aqui, mas em amor. Da equipe diurna, da limpeza, dos técnicos, médicos, supervisores, meninas da recepção, meninos da porta – às vezes, saio há uma hora da manhã e eles ficam ao meu lado esperando um taxi… Se posso deixar uma palavra desta experiência é GRATIDÃO. Eu não reclamo. As pessoas dizem que vivo em estado de choque. Eu digo que vivo em estado de Graça. Pois acordar e dormir sem saber o momento que sua filha vai partir… isso é o mais difícil. E é principalmente dela que parte uma força muito grande. O que encanta na Maria Luiza é que ela se satisfaz com qualquer coisa, se está na UTI está muito feliz, se em casa também. E se você perguntar qual é seu maior sonho, ela responde que é ir para o céu, morar com Jesus. Isso angústia porque a gente é muito egoísta como mãe. Mas ela é muito espiritualizada, ela sonha e verbaliza o que vê. No céu, diz que vai ser livre de todos os aparelhos, vai poder correr e brincar. Seu livro de cabeceira é ‘Um lugar chamado céu’. Para ela, aqui é uma passagem, porque a sua missão está sendo cumprida com brilhantismo”. Mesmo assim, Laura diz que a vontade que ela tem de viver não é compatível com o quadro dela, todos os médicos garantem isso. “E é o que não deixa a gente desistir… porque ela não desiste dela. E se ela é assim, quem sou eu para desistir como mãe”, completa.

Malu – uma criança especial em saber sorrir na alegria e enfrentar a dor e os desafios, como um pequeno degrau de uma escadinha chamada, VIDA! 

(Matéria publicada no site em 2015)